O maior vilão da história

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Há um mito amplamente difundido entre quem não conhece profundamente as histórias em quadrinhos de super-heróis, o de que esse gênero foi criado como uma forma de propaganda política. Os adeptos dessa ideia ignoram que uma das principais características das HQs de heróis é refletir o momento presente, como qualquer trabalho de ficção. Criados pouco tempo antes da Segunda Guerra Mundial, os gibis de heróis apenas aderiram a propaganda de guerra para seguir a tendência cultural daquele momento, visando um óbvio acréscimo nas vendas. As histórias ultrapatrióticas e politizadas dos heróis lutando contra o Eixo marcaram a época conhecida como Era de Ouro dos super-heróis e confundem-se com sua gênese; alguns personagens foram criados nesse interím e ficaram impregnados com essas características definitivamente. Mais tarde, a Guerra Fria, o Vietnan, o caso Watergate, o 11 de Setembro, todos os momentos históricos importantes dos Estados Unidos tiveram reflexos nesses quadrinhos, alguns trouxeram significativas mudanças nos principais personagens e grupos de heróis. Entre a sátira e o simples comentário até o claro posicionamento político, os gibis de heróis sempre espelharam o momento atual dos EUA e do mundo.

O objetivo desses engajamentos, quando não um posicionamento pessoal dos artistas e escritores, era também comercial; vivendo no eterno ciclo de criação e consumo, necessitando sempre do auxílio de outras mídias para ganhar destaque, precisando mostrar-se de certa forma relevante para conquistar um público em sua maior parte ocasional – pra não dizer deslumbrado – com muitas opções de entretenimento, as editoras deveriam seguir a moda para vender mais gibis. As HQs de heróis sempre tiveram esse lado frágil e até hoje continuam assim, sua audiência é volátil, por vezes inconstante, e as flutuações do mercado podem por tudo em risco de uma hora para outra. Perder o bonde da história é uma preocupação se um leitor é conquistado na juventude e os anos passam, ele cresce e desenvolve novas exigências. Foi a partir dai que os personagens ganharam a necessidade de rejuvenescimento, de se afastar de qualquer sintoma da maturidade; para atingir infalivelmente o público jovem. Eles não podem envelhecer naturalmente, estão presos ao eterno momento presente.

Entretanto, verificou-se em todos esses momentos definidores que os comentários políticos, as mudanças feitas para seguir um filme ou animação de TV ou as modas das outras mídias e tendências do mercado, perfaziam histórias passageiras, com modificações claramente reconhecidas como reversíveis até mesmo pelo público menos fiel.  É aquele eterno dilema “mudaram esse uniforme, mas logo o antigo volta”, todos os fãs de quadrinhos de heróis sabem disso. Então se Capitão América ou Superman deixavam de ser patriotas, todo mundo sabia que logo iriam voltar a ser e se todo o vestuário dos X-Men mudava de cor, logo os antigos retornariam.  É lógico que essas mudanças geravam polêmicas e perseguições a autores. Por exemplo, matar um personagem querido podia levar o quadrinista a receber uma ameaça de morte em uma carta; também havia os boicotes, reclamações histéricas, ofensas generalizadas em convenções e mal comportamento dos fãs. A seguinte queda nas vendas definia o retorno da fórmula anterior. Dai vinham as reviravoltas, curas e renascimentos.

Este processo continua. Ainda hoje, o eterno devir como maneira de se adaptar e seguir o momento presente domina essas HQs, não há como nem por quê fugir de um sistema que em si foi quase sempre benéfico. Os filmes e séries de heróis seguem o mesmo caminho e tem boa parte de sua estética espelhada nos gibis, assim como ajudam a definí-los. Os acontecimentos políticos e culturais dos EUA também refletem neles. Poderia ser dito que tudo está como sempre fora, no entanto, hoje existe a forte presença de um fenômeno que é em sua essência completamente diferente de tudo o que já se viu. Este novo fenômeno, ao contrário do eterno presente, não é benéfico para os quadrinhos. Falo daquilo que chamamos de politicamente correto.

Não se trata de uma série espontânea de comentários políticos, muito menos de uma sátira da realidade atual, feita por alguns autores ou determinada pelas editoras para seguir uma certa moda, é algo mais próximo de uma ideologia.

Como ideologia, não é aplicado da mesma maneira que uma solução comercial – obviamente passageira – sujeita a flutuações do mercado, sugestibilidades do público ou uma tendência estética preconizada por outras mídias. A influência exercida e seus métodos de aplicação diferem disso tudo porque visam modificar as HQs de heróis em sua mais profunda natureza, visam controlar sua produção de forma a obter resultados definitivos e completamente diversos daquilo que todas as tendências passageiras já tiveram. Seu objetivo é a transformação definitiva da estrutura das HQs em sua raiz básica, a subversão dos seus fins e meios para possibilitar a aplicação de uma espécie de cartilha de valores e comportamento humano.

Esse conjunto de valores é baseado em uma espécie de luta de classes, de “opressores” contra “oprimidos”; os primeiros seriam os homens brancos, heterossexuais, cristãos e ocidentais, os últimos seriam toda uma miríade de classes reais e imaginárias, coligidas com o título de “minorias”, que supostamente nunca teriam tido espaço suficiente no protagonismo das histórias. Os negros e todos os não brancos, os não cristãos, os não ocidentais, as mulheres, os gays, os gordos, os travestis. Tudo isso e mais todo tipo de pessoa com comportamento desviante. Para demonstrar que os quadrinhos de heróis nunca incluíram essas classes, foi criado uma versão falsificada de sua história, sem embasamento em qualquer trabalho científico. O método consiste simplesmente em apanhar recortes de histórias descontextualizadas, de diversas épocas, e lançar sobre esses fragmentos as mais inverossímeis acusações, em campanhas de difamação preparadas por ideólogos atuantes na internet. Utiliza-se também de trabalhos acadêmicos completamente distorcidos e enviesados, de fonte suspeita e estranhos ao universo dos comics.

O teor político dos quadrinhos produzidos sob a influência dessa ideologia escapa ao eterno devir e até o violenta e desfigura. Não pretende ser um fenômeno momentâneo, é algo arquitetado e com o objetivo (e isto é condição sine qua non para sua existência) claro de eliminar o passado, dominar o presente com seus novos códigos e linguagens e se perpetuar por todo o futuro. Além disso, não tem objetivos comerciais, pesquisas mostram que os gibis contaminados por essa ideologia são um fracasso comercial.

Esse movimento cultural e político pretende gerar modificações definitivas até mesmo na estrutura da indústria, hoje são comuns as perseguições a autores por não se enquadrarem em sua cartilha comportamental. Pretende-se um expurgo. Outra prática agora comum é a estigmatização de determinados comportamentos dos fãs. Piadas com minorias são proibidas, o simples ato de elogiar uma garota de cosplay agora é criminalizado. O autoritarismo do politicamente correto pretende também modificar o modo de pensar e de se comportar dos leitores.

As histórias em quadrinhos de heróis sempre tiveram forte relação com o momento político, porém o fenômeno atual se difere de tudo que já aconteceu em mais de setenta anos de seu desenvolvimento. É uma ameaça ao próprio gênero e assim deve ser combatido. É o maior vilão da história.

13 comentários

  1. Só digo o seguinte: quando você fala que “elogiar garotas em cosplay é criminalizado” eu penso em machistinhas de porta de banheiro soltando cantadas de pedreiro e mandando um GOXXXXXTOSA na lata. É esse o elogio que está sendo criminalizado? Que bom!

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  2. Até que enfim saiu do meio do mato pra escrever no caixa, hein, Mauro, rsrsrsrs. E com mais um post pra atrair a ira da patrulha. O remédio para o problema, no caso, é fazer com que esses “justiceiros sociais” mostrem suas cores verdadeiras. Eles são os verdadeiros fascistas, é só ‘dar corda’ que eles mostram quem são.

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  3. Desculpe, durante a Era de Prata (1956-1970), na DC Comics ao menos, praticamente não houve menções ou envolvimento com as guerras da época (Guerra Fria e do Vietnã). Na Marvel me parece que foi diferente, temos o Homem de Ferro, por exemplo, que tinha sua origem ligada diretamente à guerra. Na Charlton Comics também havia um grande número de personagens ligados as guerras: Capitão Átomo, produto da Guerra Fria, enquanto que o Judomaster era retroativamente ligado à Segunda Guerra.

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  4. A verdade é que o capitão virou nazista porque ele é branco, homem e hetero. E heróis não podem mais ser assim. Ou ele virava gay ou virava nazista. Esses são os tempos atuais da Marvel.

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  5. Excelente texto Mauro. Agora, o que achas das pretensões do roteirista Nick Spencer criando um Steve Rogers que ¨sempre¨ foi da Hydra? Ele não só negou qualquer hipótese de que o personagem não é duplo ou esteja sobre controle mental, como disse que essa revelação afetará os quadrinhos do “capitão socialista” Sam Wilson.

    []’s

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    1. O objetivo é destruir a visão que temos do personagem como símbolo do patriotismo americano, defensor das liberdades do mundo ocidental, como foi apresentado porJack Kirby e Joe Simons em sua criação. Como deixei claro no artigo, o objetivo dessas transformações é causar mudanças na mentalidade dos leitores.

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  6. Ótimo texto. Sobre o contexto histórico das HQs, concordo com algumas passagens e com outras nem tanto – mas são zonas cinzas, passíveis de discussão (à mesa de um bar, de preferência). Sobre o caso do Homem de Gelo, especificamente em partes desse post e inteiro no anterior, essa recente declaração do George Takei corrobora suas constatações e finaliza o tema:

    http://www.adorocinema.com/noticias/filmes/noticia-122796/

    Mais claro que isso, só desenhando.

    Abraço!

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